No velho oeste dos bits sempre houve xerifes que tentaram impor suas regras, as vezes para manter a ordem e as vezes para controlar o que os outros podem ou não ver. Mas, no caso mais recente envolvendo games na Steam, não estamos falando de um xerife com crachá, e sim de dois banqueiros globais: Visa e Mastercard.
A polêmica surgiu quando desenvolvedores e jogadores perceberam que certos jogos, especialmente aqueles com conteúdo sexual mais explícito ou temáticas consideradas sensíveis, estavam sendo discretamente bloqueados na plataforma. Mas a Valve (dona da Steam) não havia alterado sua política pública sobre isso. A pressão vinha de outro lugar: das empresas de pagamento, que controlam a torneira por onde passa o dinheiro.
O mecanismo é simples e perverso: ao invés de banir diretamente um jogo, as bandeiras de cartão avisam à plataforma que não irão processar pagamentos relacionados a determinados conteúdos. É uma censura econômica, invisível e sem debate público. Você pode até continuar vendo o jogo listado, mas não consegue comprá-lo ou, no caso de novos títulos, ele nem chega a ser lançado.
Segundo reportagens recentes na PC Gamer e GamesIndustry.biz, esse tipo de restrição começou a ganhar força nos últimos anos, com origem no endurecimento das regras para plataformas de conteúdo adulto como OnlyFans e Patreon, quando Visa e Mastercard decidiram “limpar” suas operações de risco reputacional. Agora, o alvo se expandiu para o mercado de jogos digitais, especialmente os indie, que dependem da liberdade criativa para existir.
O mais preocupante é que esse movimento não está partindo de leis ou processos democráticos. Não houve debate no Congresso de nenhum país, nem consulta pública, nem regulamentação clara. Trata-se de uma decisão empresarial, guiada por interesses financeiros e pela percepção subjetiva do que é aceitável. É um precedente perigoso: se hoje é sobre nudez ou violência sexual, amanhã pode ser sobre política, sátira ou qualquer tema que incomode investidores.
E aqui vale uma reflexão: a Steam já possui filtros de conteúdo, ferramentas de controle parental e sistemas de classificação etária. Ou seja, a decisão sobre o que comprar poderia perfeitamente ficar nas mãos do consumidor e não na do cartão de crédito. Ao deslocar esse poder de escolha para corporações financeiras, estamos abrindo mão de um princípio básico da internet livre: o acesso sem barreiras impostas por terceiros.
No Brasil, essa discussão ainda é tímida, mas não irrelevante. Plataformas de pagamento têm enorme influência sobre o mercado nacional de games, onde o parcelamento no cartão e as promoções são essenciais para a maioria dos jogadores. Uma restrição imposta lá fora pode significar que desenvolvedores brasileiros jamais terão chance de vender determinados tipos de jogo aqui — não por causa de uma lei, mas porque um intermediário decidiu que “não é apropriado”.
A relevância dessa onda de censura não está apenas no conteúdo bloqueado, mas no precedente que cria. Hoje, é um punhado de jogos adultos. Amanhã, pode ser qualquer título que se torne “politicamente arriscado” para as empresas que controlam o fluxo do dinheiro digital. E não se assustem se tudo isso for feito em nome da “defesa das criancinhas”.
E nesse faroeste moderno, quem controla o banco não precisa nem sacar o revólver para vencer o duelo. Basta cortar o crédito.