Por muito tempo, o setor de games foi tratado como uma extensão do entretenimento infantil ou como um subproduto da indústria da tecnologia. Agora, com a aprovação do Marco Legal dos Games e sua inclusão formal no setor audiovisual brasileiro, os jogos digitais ganham visibilidade, reconhecimento cultural e acesso a mecanismos de fomento antes restritos ao cinema e à TV.
Mas há um risco em comemorar demais. Confundir essa conquista simbólica com uma solução estruturante para o desenvolvimento do setor é ignorar aquilo que realmente determina o sucesso de um jogo. Mais do que incentivos fiscais ou editais, o que os games precisam é de uma abordagem própria, alinhada à sua natureza interativa, digital e em constante evolução.
Ao contrário do que ocorre no cinema, onde o roteiro e a direção dominam, o sucesso de um game nasce da interação, do gameplay, da experiência construída entre jogador e sistema. Isso exige profissionais com formação específica: designers de mecânicas, programadores de IA, especialistas em experiência do usuário e produção digital.
Inseri-los em cursos de audiovisual é como ensinar matemática aplicada em aulas de história da arte: interessante, mas insuficiente. O Brasil precisa investir em formação técnica específica para jogos digitais, desde o ensino médio até a pós-graduação, passando por programas de capacitação rápida e parcerias com plataformas tecnológicas.
Fundos públicos do audiovisual são, em sua maioria, voltados para projetos com cronogramas fixos, roteiros fechados e orçamentos previsíveis. O ecossistema de games é movido por outra lógica: prototipagem rápida, risco criativo e ciclos iterativos. Grandes sucessos nascem em game jams, garagens ou estúdios independentes que testam ideias sem garantia de retorno.
Tentar adaptar os games às regras do audiovisual pode, na prática, sufocar a inovação. O que precisamos é de políticas públicas próprias para experimentos interativos, protótipos de baixo custo, laboratórios criativos e editais que abracem o risco e não o evitem.
Publicar um jogo hoje significa muito mais do que colocá-lo nas lojas digitais. É preciso entender algoritmos de visibilidade, engajamento de comunidade, marketing digital, localização internacional, parcerias com streamers e muito mais. Essas competências, que não fazem parte do universo tradicional do cinema, são vitais para que um bom jogo seja descoberto e jogado.
Sem políticas que incentivem a distribuição, internacionalização e promoção de games brasileiros, a produção local corre o risco de ficar invisível em um mercado globalizado e competitivo.
Diferente de um filme, que é lançado e pronto, muitos games atuais operam como serviços vivos: recebem atualizações, eventos sazonais, conteúdos extras. Isso exige estrutura técnica, servidores, análise de dados, gestão de comunidade que simplesmente não existe nos moldes tradicionais do setor audiovisual.
A produção de um jogo bem-sucedido não termina no lançamento. O suporte, o relacionamento com os jogadores e a evolução do conteúdo são parte essencial do processo e precisam ser compreendidos e fomentados por políticas que reconheçam essa característica.
Investir na propriedade intelectual brasileira original é a chave para criar valor duradouro. Jogos como Celeste, Hades ou Katana Zero se tornaram marcas globais por suas identidades únicas. No Brasil, ainda falta incentivo para que estúdios retenham suas criações, licenciem produtos, negociem adaptações e ganhem com mais do que apenas a venda inicial.
Da mesma forma, o país precisa facilitar a exportação de jogos digitais, com apoio a feiras internacionais, programas de localização, certificações, marketing externo e acordos comerciais. O jogo brasileiro precisa deixar de ser exceção para virar referência.
Não se trata de rejeitar o audiovisual, mas de reconhecer seus limites. Colocar os games dentro desse setor pode ser um passo importante, mas está longe de ser o ideal. Se quisermos que o Brasil seja protagonista mundial na criação de jogos, precisamos ir além da verba: precisamos de visão estratégica, políticas próprias e uma compreensão clara do que torna o game um fenômeno cultural, econômico e tecnológico único.
Durante a consolidação do Marco Civil dos Games vivenciamos uma luta ferrenha para o setor de games não ser “tragado” pelas bets, com a desculpa de que jogos de azar seriam na verdade “jogos de fantasia”.
Não podemos agora nos render completamente à ilusão de que jogos digitais e produções audiovisuais são 100% correlatas. Vale aqui o mesmo argumento: verbas públicas e facilidades não podem atuar como canto da sereia e ofuscar a verdadeira necessidade de um segmento independente, forte e abrangente. Afinal, nem todo jogo tem animação, trilha sonora, enredo elaborado ou complexo e menos ainda dependa de salas e políticas de exibição.
Games não são filmes jogáveis. São mundos interativos, vivos, em constante transformação. E merecem ser tratados como tal, mas a luta para atingir este status tem que partir do próprio setor e seus protagonistas.