Em setembro de 2015, a pouco conhecida tribo do povo indígena Kaxinawá, que se espalha por doze terras demarcadas no estado do Acre, especialmente nas regiões do Alto Juruá e Alto Purus, aparecia nos grandes centros urbanos na forma de um jogo produzido em parceria entre os jovens da comunidade tribal e um pesquisador dos povos tradicionais, por meio de uma versão preliminar de Huni Kuin: Os Caminhos da Jiboia, game inspirado na realidade deste seleto grupo de habitantes do Brasil, desde antes das caravelas. O antropólogo Guilherme Meneses, o pesquisador em questão, lançaria a versão final do game em abril do ano seguinte.
Uma década depois, o mesmo profissional e outros jovens da tribo trazem uma versão de demonstração da esperada continuação do projeto, Huni Kuin: Beya Xinã Bena (Novos Tempos). “Minha ideia era que as pessoas pudessem rever seus preconceitos, respeitar os povos indígenas e reconhecer o valor de seu modo de vida, espiritualidade e cultura”, explicou o pesquisador, em reportagem da Folha de S.Paulo, à ocasião da apresentação do jogo original no projeto Rumos do Itaú Cultural, naquele mês de setembro.
“O objetivo do jogo é proporcionar ao jogador uma imersão nas narrativas e conhecimentos do povo Huni Kuin por meio da recriação de sete histórias deste povo, shenipabu miyui — como eles chamam, ou histórias dos antigos — além de um hub que retrata uma aldeia nos dias atuais. Xinã bena (novos tempos ou novos pensamentos) é o tempo presente para os Huni Kuin, no qual destacam-se o fortalecimento das práticas culturais, o compartilhamento de seus conhecimentos com o ‘mundo de fora’ e o enfrentamento das mudanças climáticas, tema também abordado no game”, informa o release de divulgação da novidade.
O game foi produzido de forma colaborativa, sendo a arte das cutscenes composta por desenhos originais de artistas huni kuin, as histórias das fases escolhidas em grupo e narradas pelos pajés e anciãos nas aldeias, os personagens e cenários inspirados em pessoas e paisagens reais e a trilha sonora fazendo uso dos cantos tradicionais na língua hãtxa kuin, relacionados aos diferentes momentos e elementos do jogo.
Entre os exemplos desse trabalho colaborativo estão o canto utilizado pelas mulheres no aprendizado dos kene, os grafismos, e os cantos do cipó, quando o personagem entra na força do nixi pae, produto preparado a partir de folhas e cipós medicinais, ou quando se observam os resultados dos diálogos dos personagens e das narrações das histórias, que foram gravados em oficinas na aldeia, com intérpretes escolhidos de acordo com as características dos personagens.
A produção valoriza a cosmovisão indígena como forma de enfrentar os desafios frente às questões ambientais contemporâneas, ao mesmo tempo em que conecta esses saberes às novas tecnologias.
Mais do que homenagear uma das mais tradicionais tribos indígenas do país, a produção reflete o modo de vida e a cosmologia do povo Huni Kuin inspirados nas relações entre todos os seres, humanos e não-humanos, que habitam a floresta. “É preciso lidar com os yuxin e yuxibu e praticar uma boa relação com os animais durante a caça”, explicam os criadores do projeto.
Os grafismos, conhecidos como kene, que se apresentam na forma de padrões geométricos recebidos em sonhos e ensinados pela Jiboia, estão integrados à narrativa do jogo, e deve ser coletados e montados pelo jogador como quebra-cabeças para obter recompensas e itens especiais.
Huni Kuin: Os Caminhos da Jiboia, o game original de 2016, foi produzido pelos índios da comunidade Kaxinawá em parceria com profissionais de arte e tecnologia e a colaboração de estudantes de pós-graduação em antropologia da Universidade de São Paulo, USP.
“O jogo eletrônico Huni Kuin: Yube Baitana foi desenvolvido [com o objetivo] de possibilitar uma experiência de intercâmbio de conhecimentos e memórias indígenas por meio de uma nova linguagem: os videogames”, informava o texto da página Colaborações etnográficas, no Facebook [o debate hoje já não está mais disponível na plataforma]. O evento em questão apresentava detalhes do desenvolvimento do primeiro projeto do grupo indígena com o antropólogo.
“O primeiro jogo tinha cinco histórias, este tem sete”, comentou Guilherme Meneses, em conversa com o Indie Brasilis. “Este [novo] jogo foi muito mais trabalhado tecnicamente em todos os aspectos, a arte, o cenário, a iluminação, a própria floresta, o background, as animações dos personagens, a gente fez um serviço de animação em rig, spine, para que a animação ficasse fluída”, explicou.
“A gente fez um remake melhor, com mais features, com mais mecânicas, que ele sobe na árvore, faz flecha com os bambus, enfim, é um jogo aprimorado em relação ao primeiro, tecnicamente”, defendeu.
Guilherme comunicou que o novo projeto conta ainda com cinco mini games, uma grande evolução em relação à produção da década passada, e questões transversais importante, como as mudanças climáticas que são trabalhadas de forma complementar à narrativa entre as histórias,
Em termos de metodologia, Meneses relata que não houve grandes alterações de processo, trabalhando basicamente com a realização de oficinas nas aldeias, retomando temas como contação de histórias,. produção de desenhos e efeitos sonoros e canto para os participantes. Durante a pandemia com a Covid-19, a equipe de produção do projeto conseguiu realizar duas a três oficinas com grupos de interessados na capital paulista, elaborando a produção de novas histórias já com vistas à criação do segundo jogo.
A proposta tomou corpo a partir da seleção em um edital com a Lei Paulo Gustavo, que permitiu dar início ao desenvolvimento da ideia, com a realização de novas oficinas nas aldeias, durante 2024 e 2025, com mais de cinquenta pessoas das tribos Huni Kuin, diretamente envolvidas na produção e outros muitos indígenas no apoio à iniciativa coletiva, segundo o pesquisador.
“Outra diferença de coisa que a gente colocou nesse [jogo] e que não tinha no outro e que deu muito trabalho foi a dublagem das falas, que o jogo agora está inteiro narrado, no outro era só o pajé que, em uma cutscene, era uma primeira voz, mas não era durante o gameplay”, rememorou. “Nesse não; cada história tem seus personagens e, como na história da jiboia, que tem dez personagens, a gente pegou dez pessoas da aldeia e cada um era um personagem e assim a gente fez com todas as histórias, e assim eles gravaram todos os diálogos na língua deles”, narrou, destacando a importante participação da comunidade na interpretação das falas do jogo.
O antropólogo salientou o processo de aprimoramento das artes do game, a partir da seleção de aproximadamente sete artistas das aldeias cujos trabalhos melhor representavam o conceito e a estética pretendidos para dar densidade à narrativa do jogo. “[Eles] estudaram juntos com os pajés as histórias para ilustrar e utilizamos estes desenhos, que ficaram mais profissionais [com o objetivo] de lançar nos consoles, também”, informou.
A trilha sonora do game é também original. “No primeiro jogo, a gente produziu a trilha em parceria com o grupo Amazon Ensemble, e o compositor Eduardo Agni, e a gente utilizou as faixas que eles tinham produzido lá nas aldeias. Nesse, a gente foi atrás deles [os indígenas] e pediu para eles produzirem uma trilha sonora específica para o jogo, e a gente produziu mais de vinte faixas com os cantos Huni Kuin”, relatou.
Talvez o aspecto mais relevante da imersão proporcionada pelos games produzidos por essa iniciativa seja o contato mais próximo e a vivência, ainda que digital, no universo Huni Kuin, oferecendo aos jogadores e especialmente aos jovens estudantes a oportunidade de entrar em contato com os saberes indígenas, como os cantos, grafismos, histórias, mitos e rituais deste povo, levando um pouco dessa cultura para a sociedade brasileira através de um meio largamente acessível e bem aceito na atualidade.
Huni Kuin: Beya Xinã Bena está sendo produzido pela Associação Povos da Terra – APOTI e pelo estúdio Philosophical School of Games, e chega ao mercado por meio de uma parceria com a distribuidora QUByte Interactive.
A versão demo está disponível integralmente na língua nativa do povo indígena do Acre e nos idiomas português, inglês e espanhol, e pode ser baixada gratuitamente na página oficial no Steam, com lançamento do jogo completo está previsto para o segundo trimestre de 2026.
Mais informações podem ser acessadas no site do projeto.
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