No jogo da vida real não há botão de save. Quando o estúdio fecha o projeto some, o crachá é devolvido e o sonho vira dívida. Desde 2023, a indústria global de games vem passando por um processo massivo de demissões em estúdios grandes, médios e pequenos, com milhares de desenvolvedores, artistas, programadores e roteiristas sendo descartados como se fossem DLCs fora de moda.

A pergunta que está pairando sobre nossas cabeças é: como um setor que bate recordes de receita ano após ano demite tanta gente?

Há quem culpe o capitalismo, e com razão. Outros falam em reestruturação de mercado e não estão totalmente errados. Há ainda os que apontam para os empresários malvadões, o velho vilão de terno preto e gargalhada grave. Mas a verdade é mais complexa. E mais incômoda também.

Porque as demissões em massa no mundo dos jogos digitais são sintoma, mas também resultado de escolhas. São o reflexo de uma indústria que, mesmo feita por gente criativa, ainda joga com as regras de um modelo de negócios brutalmente repetitivo: inflar, crescer, prometer e cortar.

Não se engane, o discurso de que games são arte convive, no mesmo parágrafo, com o relatório trimestral de lucros. E entre um e outro, há uma tensão constante.

A indústria dos jogos digitais opera sob o mesmo modelo das startups e do cinema hollyudiano: grandes apostas, grandes riscos, grandes cortes. O problema é que, ao contrário de um filme, um jogo pode levar cinco, sete, até dez anos para ser feito. E nesse intervalo, os ventos mudam, o algoritmo se altera, a moda passa e os investidores continuam querendo retorno.

Quando a pandemia estourou, o mercado explodiu de otimismo. Todo mundo em casa? Mais tempo para jogar! Mais jogadores, mais vendas, mais contratações. Estúdios cresceram rápido, muito rápido. Equipes dobraram de tamanho. Projetos ambiciosos surgiram da noite para o dia.

Mas com o retorno ao novo normal, a bolha começou a murchar. O crescimento desacelerou, os custos subiram, os investidores ficaram nervosos. E, como sempre, quem paga a conta é quem estava no teclado, na prancheta, na engine.

É fácil, e às vezes necessário, apontar o dedo para os CEOs que ganham bônus milionários enquanto demitem centenas. Casos como o da Embracer Group, que comprou tudo o que podia, prometeu mundos e fundos, e depois colapsou como um castelo de cartas, são escandalosos. Blizzard, Unity, Epic, Bungie, Riot, Microsft, a lista cresce todo mês.

Mas também é preciso entender o modelo de negócios por trás dessas decisões. Os estúdios muitas vezes são forçados a crescer para parecer valiosos. São avaliados não pelo que fazem, mas pelo quanto prometem fazer. E isso cria uma engrenagem onde a expectativa é sempre maior que a entrega.

Isso sem contar a pressão absurda por lançamentos contínuos, atualizações infinitas, integração com IA, experiências ao vivo, monetização via battle pass, NFTs (lembra deles?), metaversos (sim, ainda tem gente tentando) e toda essa sopa de buzzwords que vem com a exigência de inovar com segurança e lucro garantido.

No fundo, o problema não é só o empresário malvadão. É a lógica de crescimento constante aplicada a um meio criativo, artesanal, imprevisível. O jogo como produto replicável, escalável, automatizável, quando ele é, na sua essência, um processo humano e sensível.

O efeito colateral disso tudo é uma paranoia crescente. Ninguém se sente seguro. Mesmo em empresas estáveis reina o medo: o próximo corte pode ser você. A cultura do crunch, antes associada ao final de projeto, virou estado permanente. E o burnout virou quase um pré-requisito para a permanência na área.

Além disso, a cultura do hype cobra seu preço. Jogos são anunciados cedo demais, mostrados em trailers cinematográficos que não correspondem à realidade. Quando o lançamento decepciona, a internet ataca, os estúdios recuam, os investimentos evaporam e os cortes voltam.

A relação com o público também se degrada. Muitos jogadores não veem os desenvolvedores como pessoas, mas como prestadores de serviço que devem diversão 24h por dia. E nessa lógica, o gamedev vira refém da própria comunidade.

Se nos grandes mercados o corte é uma tragédia com aviso prévio, no Brasil ele é ainda mais violento porque aqui, o que se perde não é só o emprego, é a chance. Estúdios pequenos, que contratam com sacrifício e crescem com dificuldade, são impactados duplamente por qualquer mudança no vento. Sem contar a insana burocracia trabalhista tupiniquim, afinal isso aqui é Brasil.

Além disso, muitos dos nossos profissionais atuam remotamente para empresas estrangeiras e, quando vem o corte, o primeiro a sair é o terceirizado do sul global. A precarização é globalizada.

Por outro lado, também há um fortalecimento da cena indie, da colaboração entre criadores, da diversificação de formatos. Mas isso exige apoio: editais consistentes, incubadoras reais, políticas públicas que entendam o jogo como cultura e economia.

Não é só resistir. É sobreviver com dignidade.

As demissões em massa escancaram o que muitos já sabiam: o modelo atual de produção de jogos está esgotado. Não é sustentável. Não é saudável. Não é justo.

Não há solução mágica, mas há caminhos: reduzir a cultura do hype e valorizar projetos menores, mais coesos. Incentivar modelos cooperativos de produção. Estimular a regionalização e o fortalecimento de estúdios locais. Valorizar o trabalho criativo, remunerando de forma digna e estável. Desenvolver uma crítica cultural que vá além das notas no Metacritic.

Porque no fim, quem faz jogo não são algoritmos. São pessoas. Com boletos, com ideias, com limites.

Chega de batalha contra o mercado, contra o tempo no qual vivemos. Que tal jogar juntos, em modo cooperativo? Ainda podemos sonhar com a reformulação e modernização da indústria de games. Já a reforma social, a mudança do modelo econômico e/ou do sistema financeiro como um todo, pode demorar um pouco mais.

Como disse Churchill em 1947: o capitalismo é o pior sistema, excetuando-se todos os outros e, para desespero de alguns, é nele que vivemos e nada nos fará mudar para melhor, até que algo melhor seja inventado.