Desde a aurora da civilização que uma das ferramentas sociais mais marcantes é a crítica. Ela é definida como a atividade de examinar, avaliar minuciosamente algo e transplantar essa visão para uma produção artística, literária ou científica, focando principalmente costumes e comportamentos. É fato que a crítica pode receber uma quantidade expressiva de adjetivos, tais como: crítica construtiva, pejorativa, rigorosa, oportunista, infundada e por aí afora. Mas o adjetivo mais significativo deveria ser crítica eficiente, seja lá para qual direção ela estiver apontando. Afinal deve sempre haver uma razão para uma crítica existir.

E não, não estou falando de criticar um determinado game mas da crítica embutida na narrativa criada para ele, como pano de fundo de um entretenimento que não deixa de ser político (no sentido amplo da palavra).

Alguns desenvolvedores (ainda hoje) defendem a ideia de que games não devem ser políticos. Essa ideia ressurge toda vez que um jogo menciona desigualdade, ditaduras, colapso ambiental, corpos marginalizados, corrupção, disputas de poder ou mesmo quando apenas retrata o mundo como ele é. Mas basta um olhar mais atento para perceber que todo jogo é político, mesmo que seus criadores tentem negar, mesmo que sua narrativa seja aparentemente neutra, tipo anjinhos barrocos coletando moedinhas mágicas. Mesmo que o jogador não esteja prestando atenção ao que acontece ao se redor, dentro e fora do game.

No mundo dos games digitais, desde a era do bit lascado que os jogos contém críticas, principalmente aos costumes. Mas não pense que a crítica política, presente em títulos modernos, seja invenção desse nosso tempo, ainda que ela tenha se acentuado por essas bandas, principalmente por conta da polarização direita/esquerda que vem se acirrando. E tudo bem com isso. Faz parte da nossa cultura até mesmo um certo exagero.

Lá na virada do milênio (anos 90/00) no auge da febre dos Tamagotchis (bichinhos virtuais que deviam ser tratados como pets de verdade) fiz um alien (o do filme) virtual para computador. Era uma espécie de experimento científico, em laboratório fechado e para a transição da fase de caranguejo para fase adulta era preciso “servir” um humano. Nada mais oportuno do que dar ao jogador a possibilidade de “servir” um político corrupto famoso (tem aos montes por ai).

Na mesma época fiz um jogo chamado Moscão Killer, cuja mecânica é a mesma do 21 palitos. Apenas troquei os palitos por “moscas” e aproveitando que estava na moda o combate à dengue, incluí a possibilidade de trocar as moscas por mosquitos aedes aegypti e também por larvas, terroristas e novamente políticos corruptos. Dava gosto “queimar” no laser alguns deles, mesmo que alguns ainda permaneçam em atividade.

E claro, o jogo do Mensalão, onde procurei criar um modelo experimental baseado nas falcatruas dos políticos da época, dando ao jogador a possibilidade de “escolher” os vilões daquele que foi um dos maiores escândalos de corrupção e compra de parlamentares que se tem notícia.

Note que nesses casos a crítica política propriamente dita está presente mas ela não é o foco do jogo. Normalmente ela entra em nosso cotidiano por todas as mídias informativas então nada mais justo que os jogos refletirem esse aspecto social também.

A crítica embutida, de um modo geral, ocupa um papel essencial na evolução da linguagem dos games. Ela nos ajuda a ler o que está nas entrelinhas e aquilo que os próprios designers nem sempre percebem que estão dizendo. Ela só falha mesmo quando se torna óbvia demais ou fica circunscrita em si mesma (a popular lacração). Até porque a crítica (principalmente a política) de momento tem um espaço de vida muito curto. Dura apenas segundos, em tempo de internet ou sociedade da comunicação instantânea.

Mas como esse mecanismo crítico funciona? A política dos games não está apenas nos discursos partidários explícitos, nas bandeiras ou nos slogans. Está nos sistemas. E sistemas sempre defendem uma visão de mundo.

Quando um jogo recompensa o jogador por acumular recursos infinitamente, ele está reforçando um ideal econômico.
Quando uma narrativa glamuriza invasões, colonização ou militarismo sem reflexão, há uma ideologia ali, mesmo que involuntária. Quando um RPG flexibiliza ou endurece as formas de ascensão social do personagem, o jogo está dizendo algo sobre mobilidade social.

Em outras palavras, a política dos games não é apenas conteúdo: é mecânica, é estrutura, é regra de funcionamento. E isso abre espaço para a crítica, não apenas moral, mas analítica também.

Uma das funções mais interessantes da crítica é revelar o que está naturalizado. Por exemplo: por que tantos jogos tratam violência como solução universal? Por que certas populações aparecem sempre como inimigos ou obstáculos? Por que o progresso é quase sempre medido por conquista territorial ou poder destrutivo? A crítica não está ali para censurar. Está ali para iluminar.

Ela nos permite entender que, quando você muda uma mecânica, muda também o tipo de história que o jogo é capaz de contar. Por isso, quando games indies experimentam sistemas que estimulam cooperação, cuidado, vulnerabilidade ou diplomacia, eles não estão apenas inovando no design. Estão propondo outra leitura de mundo.

É por isso que a crítica nos games não é luxo, é lente.

Jogos que se assumem como obras políticas mostram que o ato de jogar pode ser um ato de reflexão. Eles nos lembram que a escolha entre obedecer e desobedecer, entre lutar e negociar, não é apenas mecânica, é ética. E acima de tudo é possibilidade de escolhas.

Mas mesmo em games que não se pretendem políticos, o jogador interpreta, projeta, contesta. O sentido final de um jogo nunca está apenas no código. Está no encontro entre obra e público. É aí que nasce a crítica: neste espaço onde o jogador lê o jogo, e o jogo devolve ao jogador um espelho do mundo.

No fim, a crítica nos games é sinal de que chegamos à fase adulta da mídia. Quando discutimos política, cultura, estética, ética e ideologia nos jogos, estamos dizendo que isso importa. Jogos não deveriam ser meros produtos descartáveis. São artefatos culturais complexos, que moldam visões e dialogam com nosso tempo.

A crítica, sendo política ou não, inserida nos games não têm a função de estragar nada. Ela têm a função de abrir portas. De expandir o que entendemos como jogo. De permitir que novas vozes sejam ouvidas, que novas histórias surjam, que novas perspectivas entrem em cena. Ela dá ao jogador o sentido de momento, de atualidade, o provoca a pensar sobre o que anda acontecendo ao seu redor.

Games podem ser escapismo (e tudo bem). Mas nunca são neutros. E entender essa não-neutralidade é fundamental para que as pessoas se identifiquem cada vez mais com as narrativas, não apenas economicamente, mas culturalmente, artisticamente e socialmente.

Inserir críticas nos jogos é reconhecer que eles fazem parte do tecido do mundo e que jogar, pensar e debater é mais uma forma de participar dele.

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