O debate sobre diversidade nos games brasileiros é um daqueles terrenos pantanosos em que cada passo pode ser interpretado como avanço, retrocesso, afronta ou aplauso. Se há alguns anos a questão parecia restrita a representações superficiais, como a cor da pele do protagonista ou a presença (rara) de personagens femininas jogáveis, hoje o cenário inclui discussões muito mais amplas: orientação sexual, identidade de gênero, posicionamento político e até mesmo alinhamentos ideológicos explícitos nos roteiros e mecânicas. E aqui está o dilema: até que ponto a diversidade é uma ferramenta criativa poderosa e em que momento ela se transforma em muleta ideológica, em “politicamente correto” sufocante ou até mesmo em censura disfarçada?
Não há como negar que a diversidade traz riqueza. Em um países como o Brasil, multicultural por natureza, não refletir esse caldeirão humano nos games seria desperdiçar material criativo. Um jogo indie que inclua personagens indígenas em vez de só recorrer ao protagonista branco “padrão ocidental” já abre portas narrativas fascinantes. Títulos que exploram religiosidade popular, folclore afro-brasileiro ou dramas sociais urbanos trazem frescor num mercado saturado por clones de shooters militares ou RPGs medievais com elfos loiros.
Além disso, a representatividade tem efeito prático. Jogadores encontram identificação e pertencimento, algo que fortalece comunidades e pode ampliar o alcance comercial do jogo. Um adolescente trans, ao ver um personagem que reflete sua experiência, pode perceber melhor que também pertence a esse universo e talvez até se inspire a criar, usando a experiência como forma de expressão pessoal.
No plano internacional, jogos brasileiros com diversidade têm mais chance de dialogar com públicos diversos e conseguir espaço em festivais e premiações, que valorizam justamente a pluralidade cultural.
O problema começa quando a diversidade deixa de ser ferramenta artística e vira obrigação burocrática. Não são poucos os relatos de equipes indie que, pressionadas por editais de financiamento, passaram a inserir personagens de determinadas minorias apenas para “cumprir cota” e agradar júris ou instituições.
Nesse ponto, a diversidade corre o risco de perder autenticidade e virar puro selo de politicamente correto, esvaziado de impacto narrativo real. É o caso do game, por exemplo, onde todos os indígenas são os bonzinhos e lutam contra todos os não indígenas malvadões. Ser bonzinho ou malvadão independe de raça, credo, cor, sexo, opção sexual e tudo mais que servir para rotular parte da sociedade.
Outro fator é a patrulha das redes sociais. A cultura do cancelamento, combustível de paranoia criativa, faz com que desenvolvedores temam arriscar. Uma escolha de design mal interpretada pode gerar ataques organizados, linchamentos digitais e até boicotes. Isso leva muitos criadores a evitar temas relevantes ou polêmicos, empobrecendo justamente o que deveria ser diverso: a liberdade criativa.
E não podemos esquecer da censura velada: jogos com posicionamento político explícito (à esquerda ou à direita) acabam frequentemente alvejados por críticas de intolerância. O que era para ser diversidade de visões políticas acaba sendo achatado em um campo minado onde só sobrevive quem fala “o que é permitido”.
Aqui reside a contradição central: o politicamente correto nasceu com a boa intenção de evitar ofensas e exclusões. Mas quando levado ao extremo, transforma-se em uma forma de censura. E censura, seja estatal ou social, sempre mata a arte antes mesmo dela nascer.
Um game não precisa ser palatável para todos. Ao contrário, bons jogos muitas vezes incomodam, provocam, questionam. Mas o medo do cancelamento pode levar os desenvolvedores a escolherem o caminho mais seguro: narrativas insossas, personagens genéricos, conflitos pasteurizados. O resultado é um cenário em que a diversidade, paradoxalmente, cria uniformidade.
No Brasil, o impacto é duplo. Por um lado, temos a pressão global, eventos, editais e publishers estrangeiros que valorizam diversidade e premiam essa abordagem. Por outro, temos a realidade local: um país polarizado, em que qualquer gesto pode ser interpretado como manifesto político. Assim, o desenvolvedor indie brasileiro anda sobre uma corda bamba: se ousa, pode ser cancelado; se omite, pode ser acusado de reacionário.
Eventos como o BIG Festival ou o SBGames já mostraram a força de projetos que apostam em diversidade, mas também já vimos jogos atacados por públicos que acusam doutrinação. O resultado é que, muitas vezes, o estresse da reação pesa mais do que o benefício da inovação.
O desafio é enorme, mas não insolúvel. A chave pode estar na autenticidade. Inserir diversidade porque é tendência soa vazio; mas explorá-la como parte natural da narrativa, ligada ao contexto da obra, dá consistência e evita a sensação de forçação de barra. Além disso, desenvolvedores precisam entender que não há como agradar a todos e talvez esse nem deva ser o objetivo.
Outro caminho é o fortalecimento de comunidades próprias. Estúdios independentes que constroem sua base de fãs fiéis têm mais liberdade para arriscar, porque não dependem tanto da validação de críticos ou da aprovação do X, Insta ou Face.
E por fim, há o aprendizado com os cancelamentos. Eles vão continuar acontecendo. A questão é: vamos permitir que eles ditem as regras criativas ou vamos aprender a resistir à tempestade e continuar criando o que acreditamos?
Diversidade é, sem dúvida, um valor inegociável quando vista como reflexo do mundo real e ferramenta criativa. Mas quando usada como dogma, checklist ou censura, perde o sentido e empobrece os games nacionais. O papel dos desenvolvedores brasileiros não é simplesmente agradar o tribunal do politicamente correto, nem cair na armadilha de provocar polêmicas vazias. É criar mundos que dialoguem com a pluralidade humana de forma honesta, sem medo de incomodar.
Porque, no fim, a verdadeira diversidade só existe onde há liberdade. Principalmente a liberdade de expressão.