No começo dos anos 2000, quando produzir jogos comercialmente no Brasil ainda era um ato de heroísmo, o Ministério da Cultura decidiu que talvez valesse a pena olhar para aquele estranho território chamado “jogos digitais”. Não existia Steam, não existia cenário indie, não existia Unity. Existiam apenas alguns pequenos estúdios sobrevivendo na base da teimosia, alguns cursos universitários experimentais e muito improviso. Nesse ambiente apareceu o JogosBR, um concurso nacional criado para fomentar a produção brasileira de jogos e dar visibilidade para quem desenvolvia sem nenhum tipo de apoio. Na prática o JogosBR foi um concurso que tentou inaugurar ou inventar a indústria brasileira de games. Uma baita pretensão para pouca experiência de mercado.
Vale ressaltar que o concurso foi uma iniciativa ousada para a época. O governo parecia ter percebido, antes de boa parte do mercado, que jogos não eram brinquedos, mas expressão cultural, técnica e econômica. E, de fato, o JogosBR serviu como uma espécie de laboratório social: colocou estudantes, empresas e aventureiros digitais no mesmo ambiente, estimulou formação de equipes, incentivou documentação de projetos e, principalmente, deu visibilidade a pouco mais de uma dezena de criadores que jamais teriam espaço.
O concurso deveria funcionar como uma vitrine nacional. Havia categorias para jogos completos, protótipos, conceitos, pesquisa acadêmica e até roteiros. Não havia limitação rígida de engine ou plataforma, até porque quase ninguém tinha ferramentas profissionais. A ideia era simples: produzir, apresentar e competir.
Os critérios previam incluir: inovação no conceito ou na mecânica, qualidade técnica dentro das limitações da realidade brasileira, documentação do projeto (um diferencial na época!), aderência cultural (temáticas brasileiras eram sempre bem-vindas), potencial educativo ou social em algumas categorias.
Para muitos desenvolvedores, participar do JogosBR foi o primeiro contato com feedback formal, jurados, avaliação técnica e exposição pública. No papel tudo isso soou como um sonho a ser realizado, 20 anos depois da produção (artesanal) dos primeiros games brasileiros, no início dos anos 80. Mas o que se viu na sequência beirou o desastre e impactou de forma significativa o que viria a seguir.
E é aqui que reside a parte mais interessante: o JogosBR não criou uma indústria, pouco ajudou na formação de uma cultura de produção e trouxe mais caos ao já enfraquecido mercado produtor, inaugurando uma era de valorização do dinheiro público a fundo perdido, como única “salvação” para a indústria. A ideia do edital salvador da pátria, ainda hoje vista como “obrigação” do estado, nasceu desse concurso.
Apesar desses contratempos, não se pode dizer que o JogosBR teve resultado zero. Vejamos alguns destaques: estúdios e profissionais surgiram a partir das equipes que participaram do concurso, times universitários se tornaram empresas independentes, estudantes descobriram vocações, programadores e designers encontraram parceiros para projetos futuros.
O JogosBR ajudou a legitimar os jogos como expressão cultural, numa época em que o governo praticamente ignorava o setor. Tentou criar um acervo público de projetos, documentos e protótipos para influenciar universidades e cursos emergentes, ainda que pouquíssima informação, sobre esses jogos, tenha “sobrevivido” nos dias atuais. Nem se tem mais notícia desse acervo.
De certa forma o concurso ajudou indiretamente a modelar uma mentalidade de produção. O simples fato de ter que escrever GDD, apresentar pitch e produzir algo funcional já foi um salto para uma geração que não tinha referências locais de mecanismos de produção eficientes. Até porque o mundo dos anos 2000, pós estouro da bolha ponto.com, não era mais o mesmo das décadas 80/90.
A pergunta embutida nesta coluna, o que sobrou dele vinte anos depois, só pode ser respondida com um lacônico não sobrou nada. O JogosBR não evoluiu para um programa permanente, não virou incubadora, não se transformou em festival nacional. Foi um projeto de época, limitado, com orçamento modesto e uma aparente motivação político popularesca.
Mas sua influência pode ser sentida de maneiras inesperadas: vários profissionais que hoje lideram estúdios brasileiros passaram por ele direta ou indiretamente, o reconhecimento institucional dos games como cultura, hoje comum em editais e políticas públicas, teve uma das suas primeiras aparições justamente ali.
A ideia de concurso nacional inspirou iniciativas posteriores, tanto governamentais quanto privadas. A noção de que “game design não é apenas documentação, processo e entrega” foi absorvida parcialmente por universidades, algumas delas usando materiais do próprio JogosBR como referência nos anos seguintes. Mas nada além disso.
Ao contrário da era de ouro dos festivais de música popular, que consolidou e prestigia até hoje artistas, carreiras e clássicos do cancioneiro musical brasileiro, o JogosBR não logrou ter deixado nem um único exemplar de jogo a ser mencionado, sem uma ampla pesquisa no Google.
Talvez o legado mais importante seja indireto e intangível: o JogosBR convenceu uma geração de que era possível fazer jogos no Brasil, mesmo com todas as limitações tecnológicas e econômicas. Ele mostrou que existia demanda, existia talento e existia vontade. Só faltava (ou faltou) estrutura.
Hoje, com uma indústria muito mais madura, eventos fortes (BIG, SBGames, Gamescom Latam e BGS), ferramentas acessíveis e modelos de negócio definidos, isso tudo pareça óbvio. Mas em 2004 não era.
Se o JogosBR tivesse continuado, talvez tivéssemos no Brasil um ecossistema mais sólido de incubação, treinamento e visibilidade. O concurso poderia ter se tornado um hub nacional de talentos, uma vitrine equivalente ao Independent Games Festival (criado em 1998), ou até uma ponte permanente entre criadores e políticas públicas.
Talvez esteja na hora de revisitar essa ideia de movimento pró indústria, agora com ferramentas modernas, engines gratuitas, mercado internacional e uma geração de veteranos que nasceu justamente naquela época. Curiosamente, para o bem ou para o mal, o governo que tentou alavancar o JogosBR e fracassou ainda é o mesmo que governa o pais hoje.
O JogosBR teve duas realizações: uma em 2004 (quase que experimental e absurdamente amadora) e outra em 2006, com a participação da recém criada Abragames, chamada a auxiliar dada a quantidade insana de críticas ao primeiro evento. Fui crítico ferrenho da primeira edição por conta do amadorismo e, como conselheiro da Abragames, participei da reunião que traçou a espinha dorsal da premiação e dos critérios de participação da segunda.
Parodiando a fala de Elrond, no filme O Senhor dos Anéis: “Eu estava lá Gandalf, há 20 anos atrás… Lutei bravamente por um evento significativo para o mercado produtor. Mas a força dos homens falhou e acabou corrompendo muitos.”
