Mapear as produções nacionais que tratam da cultura brasileira ou que a tangenciam em alguma medida tem se tornado um exercício a cada dia mais desafiador, em vista da profusão de criações que vem sendo lançadas nos últimos anos. Se por um lado esta tarefa se torna mais árdua, é com prazer que identificamos a genialidade dos game designers do país, ao trazerem temas antes incomuns à narrativa dos jogos digitais, fazendo uso explícito dos costumes e tradições regionais na elaboração de seus projetos.
Um recente exemplo que tem despertado crescente atenção da mídia especializada é Aviãozinho do Tráfico 3: Abri um Portal pro Inferno na Favela Tentando Revivear Mit Aia e Preciso Fechar, game que faz justiça à iconoclasta irreverência do carioca da gema, resgatando a estética dos jogos da segunda metade dos anos 90 mesclada a uma acidez crítica de nossa realidade brazuca em um projeto que traça um panorama ao mesmo tempo risível e angustiante de nossa sociedade.
O game é uma produção do estúdio carioca Yellowhead Productions, do designer independente Joeveno, codinome do jovem João Guilherme Fonseca de Paula, do gênero Boomer shooter, desenvolvido a partir da engine id Tech 2, motor de criação de jogos elaborado pelo programador John Carmack em 1997, e utilizado originalmente pra o game Quake II, da id Software.
A história do jogo conta o infortúnio de um fã incondicional de Mit Aia, cantor inserido na narrativa como uma espécie de homenagem póstuma ao talentoso artista Tim Maia, que comete um grave erro ao tentar trazer seu ídolo de volta à vida, liberando o acesso de nosso plano de existência aos demônios do submundo, permitindo possessão dos seres humanos.
Além do gameplay que propõe uma frenética movimentação por becos estreitos e vielas das favelas do Rio e do Brasil o jogo se destaca pelo humor escrachado em inúmeras passagens e situações, fato que evidencia a habilidade do designer com o desenvolvimento do projeto e a capacidade tipicamente brasileira de rir de nossa própria realidade, não importa o quão absurda ela seja neste país de crises tão bizarras.
“O game conta com 15 fases que se passam ao longo de vários locais do Rio de Janeiro, indo do Maracanã ao Copacabana Palace, a praia de Copacabana com um show dos Mamonas Assassinas, Cristo Redentor, baile da Furacão 2000 e mais”, diz o texto postado pelo estúdio no site Vakinha, onde Joeveno realizou uma campanha de financiamento coletivo bem sucedida. “O game está com a build beta jogável para android e PC, podendo jogar do começo ao fim com amigos também através de hamachi ou radmin VPN, todas as fases tem cooperativo e deathmatch embutidas”, explicou o game designer.
O streamer Alan Motta Cardoso, conhecido como Alanzice, teve acesso ao Early Access de Aviãozinho do Tráfico 3 e postou uma live com o gameplay do projeto, em março deste ano, afirmando ser “um dos jogos brasileiros mais insanos que você já viu”.
Para o IGN, Bárbara Castro produziu um longo artigo, em julho deste ano, destacando detalhes da produção de Joeveno, relatada como parte de uma “cultura de jogos bootlegs no Brasil”.
“Era possível andar pelas ruas e encontrar vendedores com seus discos e, entre outras coisas, até jogos autorais que muitas vezes eram modificações de jogos existentes. Foi exatamente isso que inspirou Joe, de 24 anos, a criar a popular série Aviãozinho do Tráfico”, descreveu a jornalista.
Como informa o artigo, “Joe detalha que só ficou mais imerso nessa cultura quando ganhou o PlayStation 2, citando jogos como ‘GTA Cidade de Deus’, ‘GTA Rio de Janeiro’ e os Bomba Patch da Copa do Mundo de 2010 e o Bomba patch de quando Ronaldinho Gaúcho foi para o Flamengo, que diz ser um de seus favoritos por ser flamenguista”.
Joeveno confessou que sempre “tentava procurar ou identificar alguma coisa do meu país e quando eu baixava mods para o GTA, sempre procurava aqueles de carros brasileiros, da favela…”
Para o jovem, a triste realidade de precariedade financeira vivida pela maioria da população brasileira e a disseminação de uma indústria de pirataria de games acabou por se mostrar “uma democratização da cultura, querendo ou não”.
Joe conta que a criação de seu game de estreia, “Aviãozinho do Tráfico 1: Despacito 5 quem ler é Arrombado 2”, foi criado a partir de seu interesse na física do game de Sonic. “Não gosto do dash panel dele, gosto de como Sonic funciona como um ‘skate’ e aí começou a pira de querer começar a criar jogo”, declarou ao IGN. “Eu fiz um Sonic na favela, basicamente”, sentenciou.
A sequência do game veio em 2019, com “Aviãozinho do Tráfico 2 3D”, desta vez tendo como insiração o game Wolfenstein 3D.
Por fim, Mit Aia, o cantor que dá título ao jogo, é uma mescla criada a partir das referências de diversos artistas, como o já citado Tim Maia, Agepê e Compadre Washington, ideia que surgiu para evitar problemas de ordem legal com os familiares do criador de Me dê Motivos e Descobridor dos Sete Mares, entre tantas outras composições. Joe explicou ao site especializado em cultura pop e games que seu objetivo é homenagear artistas que ama na franquia.
“Aviãozinho do Tráfico 3 é um jogo que se destaca visualmente de várias maneiras. Desde a primeira vez que jogamos, notamos o uso de fontes em Comic Sans, sem muita preocupação com a gramática, e o restante do jogo mantém esse tom de sátira”, escreveu Alecsander “Alec” Oliveira, em review de setembro deste ano para o site Gameblast. “As texturas, que parecem ter sido extraídas de fotografias; a sátira com marcas como McDonald’s e Brahma, modificadas; e os personagens representados apenas como PNGs estáticos conferem um aspecto de jogo 3D dos anos 1990”, observou o articulista.
“Uma das coisas mais reconhecidas mundialmente em relação a brasileiros, é o nosso senso de humor esculhambado, que é refletido na arte”, confirmou a redação de um artigo no site Nerd Maldito, também de setembro deste ano, acrescentando que, “sendo assim, nos tempos modernos, a coisa não podia ser diferente e o desenvolvedor brasileiro @Joeveno decidiu mostrar isso!”, por meio do game que une Quake e favela. “Esse é um jogo cooperativo, então você pode chamar os seus amigos e experimentar um tiroteio descontrolado em uma favela do Rio de Janeiro, mas com um toque satânico”, convida o texto.
Recentemente, o desenvolvedor comemorou que seu game estava sendo pirateado pelo público, algo que considerou “muito louco”, considerando seu olhar sensível para esta questão que demonstra a dimensão abissal da precariedade financeira dos jovens de periferia no país, realidade da qual já partilhou em um passado não tão distante, ele também driblando a dura realidade da carência de recursos e de opções para obter renda. “Pô, quando eu vi isso, eu pensei ‘pô, mano, que honra’, porque isso quer dizer que o jogo tá começando a alcançar um tamanho que a galera se interessa em colocar o meu jogo em site pirata”, comentou em um vídeo disponível em seu canal (e reproduzido, abaixo).
Tudo somado, Aviãozinho do Tráfico 3 é uma iniciativa que merece reconhecimento por abraçar sem melindres nossa brasilidade, no que temos de melhor em termos de criatividade e naquilo que identifica o modo ‘survival-na-raça’ do povo do país, que se reinventa de maneira criativa com os recursos disponíveis – ou sem recursos quaisquer – criando uma identidade única no mundo, forjada à base de malandragem e gambiarras.
Ao assumir as limitações do motor como elemento fundamental para a criação do jogo, Joeveno presta sua singela homenagem aos games que ganharam o país por meio de inúmeras lan-houses com sistemas operacionais cabritados, cópias piratas de jogos e uma energia contagiante, de onde saíram muitos dos criadores de jogos da atualidade, que romperam com os limites impostos pelas dificuldades nacionais.
As imperfeições do game, para muito além de representarem problemas técnicos, são parte de uma estética que denuncia a eterna miséria de nossas condições em forma da crua poesia que surge dos rincões da sociedade, por meio de expressões da cultura de resistência, como o funk nacional, a capoeira, o Mangue Beat, a Feijoada, o piso de caquinho e até o cachorro Caramelo, entre outros.
Por tudo isso, a criação do jovem carioca merece figurar como um dos grandes projetos do game design nacional da atualidade, que já pode ser adquirido na loja virtual Steam, pelo valor irrisório de R$ 19,99. O game também está disponível na plataforma Itch.io.
No vídeo abaixo, Joeveno sintetiza os detalhes de sua produção:















Imagem: fotomontagem